Maria Clara Karipuna tinha 15 anos, já era mãe de uma criança de 2 anos, quando foi estuprada e afogada na lama.
Sentença marca um dos julgamentos mais duros da história do Oiapoque
O pescador Cláudio Roberto da Silva Ferreira, de 45 anos, foi condenado a 54 anos e 8 meses de prisão em regime fechado, sem direito de recorrer em liberdade.
A decisão foi proferida pela juíza Mayra Brandão, titular da 1ª Vara da Comarca do Oiapoque, durante sessão do Tribunal do Júri realizada nesta quinta-feira, 16.
O réu foi considerado culpado pelos crimes de estupro qualificado, homicídio qualificado e roubo. Ao longo da audiência, sete testemunhas foram ouvidas.
Preso preventivamente desde o dia do crime, Cláudio Roberto foi capturado seis horas após o ataque, enquanto tentava fugir em uma embarcação para o estado do Pará.
A prisão só foi possível graças à ajuda da população, que o reconheceu em imagens de câmeras de segurança. Nas filmagens, o homem aparecia saindo de uma área de pântano e lavando as mãos e os pés em uma torneira pública.
Antes de morrer, a vítima conseguiu identificar o agressor nas imagens exibidas pela polícia.
A brutalidade que chocou o país
A vítima, Maria Clara Karipuna, era uma adolescente indígena de apenas 15 anos.
Na manhã de 13 de setembro de 2023, ela saiu de casa com dez reais para comprar pão, levando o celular. No caminho, foi abordada por Cláudio Roberto, que a obrigou a seguir até uma área alagada e tomada por esgoto.
Ali, ele a estuprou e tentou afogá-la na lama, fugindo em seguida, acreditando que ela estivesse morta.
Mas Maria Clara sobreviveu. Ferida, vomitando e quase sem forças, ela se arrastou até a casa onde vivia com o pai e a madrasta.
Levada ao hospital local, passou dois dias internada. Por ter engolido lama e fezes, seus pulmões ficaram gravemente comprometidos — e ela precisava de tratamento intensivo.
O problema: Oiapoque não tem UTI.
Morte anunciada e a ausência do Estado
A jovem precisou ser transferida para Caiena, capital da Guiana Francesa, a cerca de três horas de viagem, pois não havia estrutura hospitalar no município nem transporte adequado ou tempo hábil para levá-la até Macapá, distante quase 600 quilômetros.
Maria Clara morreu dois dias após a transferência, em 17 de setembro de 2023, vítima de septicemia generalizada.
O pai da adolescente, Neo Vieira, relatou que o médico francês que a atendeu disse que ela chegou tarde demais:
“Se tivesse recebido os cuidados intensivos no mesmo dia, talvez tivesse sobrevivido”, lamentou o profissional.

Vítima que ficou dois dias internada em Hospital sem CTI no Oiapoque, foi para Caiena, mas já era tarde demais.
O retrato cruel do Brasil esquecido
A morte de Maria Clara vai além da tragédia individual.
Ela representa o retrato mais cruel de um Brasil que não protege suas crianças, suas mulheres nem seus povos indígenas.
Um país onde a pobreza, o abandono e a omissão do Estado tornam as vítimas duplamente indefesas: diante do criminoso e diante do próprio sistema.
Infância marcada por abusos
No dia em que foi atacada, Maria Clara já era mãe de uma criança de dois anos.
Em 2021, quando tinha apenas 13 anos, ela e as irmãs já eram vítimas de abusos sexuais cometidos pelo padrasto.
A Polícia Civil comprovou as denúncias e encontrou a menina já com um bebê nos braços — fruto de abuso sexual na infância.
Mesmo diante desse histórico de violência e vulnerabilidade, nenhuma política de proteção eficaz foi garantida.
Um Estado que não protege uma menina violentada na infância já carrega parte da culpa pela sua morte.
A Justiça que falha e a impunidade que mata
Cláudio Roberto não era réu primário. Já tinha passagens por roubo e tentativa de estupro.
Ainda assim, estava em liberdade.
Uma Justiça que liberta um agressor reincidente se torna cúmplice do próximo crime.
Uma Justiça que não previne é tão culpada quanto aquele que comete a barbárie.
Oiapoque: onde o Brasil começa, mas a vida termina
Com cerca de 30 mil habitantes, o município de Oiapoque — símbolo de onde o Brasil “começa” — convive com a ausência quase total do Estado.
A cidade não possui UTI, carece de médicos especializados e tem uma das estradas mais precárias e inacabadas do país, o que dificulta o acesso à capital e ao atendimento de urgência.
Se o hospital local tivesse uma unidade de terapia intensiva, Maria Clara Karipuna poderia estar viva.
Do lamento oficial ao descaso permanente
Após o crime, o governador do Amapá, Clécio Luís, divulgou nota oficial expressando solidariedade à família:
“Imaginamos a dor de uma família perder uma menina tão jovem. Estamos consternados e tristes com o caso, que nos abalou muito. Nos envolvemos como Estado para ajudar a trazer a Maria Clara de volta para que ela tenha um enterro digno e prestar toda a ajuda possível.”
Mas o lamento oficial não se traduziu em ação prática.
Até hoje, nenhuma medida efetiva foi adotada para evitar novas tragédias.
A emenda rejeitada que poderia salvar vidas
Comovida com o caso, a então deputada federal Silvia Waiãpi destinou R$ 3 milhões em emenda parlamentar para equipar o CTI do Hospital de Oiapoque, propondo que o espaço levasse o nome de Maria Clara Karipuna.
A proposta foi aprovada na Câmara de Vereadores e recebeu apoio de parlamentares estaduais e lideranças indígenas.
Mesmo assim, o governador Clécio Luís vetou o projeto e a homenagem, alegando “inconstitucionalidade técnica”.
Com isso, o município perdeu os recursos e a oportunidade de finalmente ter um centro de terapia intensiva.
“Vetaram a vida de Maria Clara”, denuncia Waiãpi

Em 2024, Sìlvia Waiapi havia destinado 3 milhões para fazer uma ala de CTI no Hospital do Oiapoque com o nome de Maria Clara Karipuna.
Em pronunciamento público, em suas redes sociais, dia 5 de junho de 2024, Silvia Waiãpi afirmou:
“Destinei três milhões de reais para equipar o CTI do Oiapoque, motivada pela morte de Maria Clara Karipuna, indígena estuprada e afogada na lama.
Ela morreu porque o município não tinha CTI.
Sugeri que o centro levasse seu nome, para que ninguém esquecesse a forma brutal como ela morreu e para salvar outras vidas.
Mas o governador vetou, dizendo que era inconstitucional.
O povo do Oiapoque perdeu o direito à vida digna e ao socorro imediato.”
A condenação do assassino de Maria Clara é necessária, mas não encerra a responsabilidade do Estado.
Enquanto a Justiça for lenta, o sistema falho e as políticas públicas inexistentes, novas Maria Claras continuarão morrendo na lama da omissão.
Oiapoque pode ser o início do Brasil, mas, para muitas meninas indígenas, continua sendo o fim da esperança.
Adriana Garcia
Jornalista na Amazônia
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