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 caos rio

Gerações inteiras nasceram e cresceram aprisionadas pelos criminosos que deveriam estar presos.

É sobre o Rio, mas também é sobre as gerações e a realidade que elas vivem. É sobre a vida que elas conhecem. Eu estava agora me perguntando: e se, por milagre, a polícia, a justiça e o Estado conseguissem acabar com as facções criminosas que mandam nos morros do Rio de Janeiro, como aquela população encararia uma nova vida?

As crianças acostumadas com armas, com o barulho de tiros, com a morte e com o cheiro de sangue — elas que já sentem o medo como uma emoção diária, conhecida — talvez nem saibam o que é viver sem ele. Seus heróis morreram de overdose ou em confronto com a polícia. Suas histórias se misturam a um enredo de terror, tratado com a normalidade de quem só conhece essa vida.

Para quem nasceu e viveu ali, para quem casou, se tornou mãe e avó, a rotina que qualquer um de nós não suportaria por um dia é a que elas tiram de letra — porque desconhecem outra. E aquilo que a gente desconhece acaba por nem existir no imaginário. Vamos sonhar com o quê? Qual seria o sonho delas? Crescer para quê? Como completar essa frase vendo tantas vidas interrompidas antes mesmo de crescerem?

Um lugar governado por um Estado paralelo, com uma política paralela, regras paralelas, cultura, costumes e rotinas paralelas. Para quem vive, não é errado — é simplesmente o que há para hoje e para amanhã. Os vícios se tornam hobbies, os crimes se tornam nobres, a desumanização se torna um traço, uma arte, uma peça, um funk.

E, de repente, uma cortina se abre para um mundo “normal”, mas que causa medo por ser tão desconhecido. De repente, como se fosse preciso aprender uma nova língua, é necessário aprender novos conceitos e uma nova forma de ver o mundo. O errado que era certo volta a ser errado. O certo que era errado volta a ser o certo. A paz que os de fora tanto clamam custará traumas que os de dentro tanto evitam. Afinal, eles já estavam acostumados. Deixar o que nos faz mal também é incômodo e cruel — por causa do costume. Entender que existe uma vida sem crime, sem violência, sem drogas e sem tráfico não será fácil. Serão necessárias muitas gerações.

Na vida, há dores grandes que acabam nos poupando de dores para sempre. Ou seja, não há alternativa sem sentir dor — é só escolher qual vamos abraçar.

O Estado não pode salvar, mas pode colocar os limites que salvam. E onde não há presença do Estado, não há lei. Onde não há lei, há caos. A lei não resolve, mas aponta o problema. Sem ela, somos destruídos por um problema real que não conseguimos ver.

Eu oro pela libertação do povo do Rio de Janeiro, ainda que isso signifique a morte de muitos culpados. Um mundo sem consequências pelos atos se torna barbárie; e um mundo em que as consequências dos maus atos de alguns recaem sobre os outros se torna injustiça perene.

Deus dá a cada ser humano a oportunidade de arrependimento, e aos que abraçam essa oportunidade, há regeneração. Penitenciária não regenera, mas contém aqueles que são irrecuperáveis, poupando a vida de inocentes. Prender jamais recupera alguém — apenas salva quem seriam suas futuras vítimas. Só existe uma forma de ressocializar o ser humano: o evangelho. Não por acaso, apenas os que se voltam verdadeiramente para Deus conseguem ser transformados. No final das contas, prova-se que a batalha sempre foi — e sempre será — espiritual, porque somente no espírito se conserta um homem.

O Estado é limitado e, por muitos anos, lavou as mãos, deixou rolar, foi omisso e até cúmplice. Se voltar a conter criminosos e mantê-los presos, inibirá o crime, estimulará a obediência às leis e será um paliativo para aquilo que só Deus resolve. A violência e o crime são traços de um ser humano entregue a si mesmo, sem freios, que vive por instintos. Em lugares comandados por pessoas sem freios, não há salvação — nem para elas, nem para suas vítimas.

Que haja intervenção estatal de verdade — não para a polícia prender e a justiça soltar — mas para que pessoas realmente perigosas para a convivência em sociedade sejam privadas de sua liberdade física, em proteção de muitas vidas. E que, nesse processo de limites e disciplina, o arrependimento se torne rotina e o espírito seja salvo, ainda que o corpo continue preso. Pois espíritos presos em corpos soltos marcaram tragicamente a vida de gerações.

O Brasil não pode mais dizer que não se envolve em guerras. Estamos dentro de uma. E, quando essa devastação passar, muitas vidas serão apresentadas a um mundo desconhecido, a um país desconhecido e a uma rotina desconhecida. A liberdade será, para essas pessoas, algo estranho demais — e talvez elas sequer consigam discernir o quanto ela é boa. Porque gerações se acostumaram em prisões sem crime, enquanto criminosos se acostumaram à liberdade. Quando a vida no meio do crime acabar, haverá muito trabalho a ser feito para curar aqueles que sequer sabem o que é viver um dia livre.

Adriana Garcia

Jornalista na Amazônia

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